quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Retroceder não é o caminho

O capitalismo sob a sua expressão neodesenvolvimentista ainda nos deixa em plena sede com relação ao avanço nas lutas sociais. Para um eleitor comunista ou até mesmo socialista, já as formas de avanço numa política encarcerada nos meandros tentaculares jurídicos encerram a política num pobre ato de sufrágio e ensejam manifesto desencanto. Entretanto, muitos talvez hão de convir, os que se posicionam no cotidiano político, que numa escolha eleitoral há certos pontos a se considerar ainda que desejosos diante do avanço na dissolução de uma sociedade de classes.

As relações entre política e história não são fáceis e jamais apresentaram fórmulas certas do porvir histórico, dos efeitos que as convulsões sociais têm na ação e reação da máquina-Estado ou nos desvios que a obrigam, sobretudo num contexto de “democracia”. Voltaremos a isso. Mas, no campo político, considerando-o como aquele em que a máquina-Estado produz sua eficácia, é preciso ponderar que o mesmo neodesenvolvimentismo insipiente quando isolado ganha gosto e, em seu contexto histórico desde 2003 até os dias de hoje, foi capaz de transformações e adaptações progressistas em meio a um quadro geral e comparativo com a antiga tendência neoliberal selvagem que se vinculava a gestão anterior aos governos Lula e Dilma. Por isso, não gostaria de discutir o que considero indiscutível, a saber, o histórico comparativo entre dois governos em questão. Apenas eu gostaria de apresentar alguns pontos os quais considero de certa relevância e que espreitam o debate político e, neste contexto, demarcam a posição daqueles que insistem na inversão neoliberal. Insisto apenas sem incorrer na ingenuidade que uma posição política se trata como questão de inteligência, pois penso que elas se referem antes ao de onde se fala do que a uma pretensa escolha livre e consciente. Com efeito, são reflexos de frações de classe que estão em jogo, com todas as disposições ideológicas próprias a elas, enraizadas nas práticas de seus sujeitos, na vivência material da vida de cada indivíduo, como penso.
O primeiro aspecto que devo chamar atenção, se me permitem, é uma dificuldade antropológica. Em muitas mídias vemos uma acentuada diferenciação antropológica ressaltada por um sentimento de moral depreciativo de uma das partes, como, por exemplo, na divisão entre norte/nordeste e sul/sudeste do país, divisão que reflete também um quadro eleitoral, pois polarizada, em traços gerais, na disputa entre Dilma/Aécio, respectivamente. A pretensão do sudeste já remonta a uma historicidade bastante conturbada de “epicentro capitalista” do Brasil, estrutura mantida até o fim do governo FHC. Todavia, desde 2003 vemos um projeto de integração no qual o descentramento da política industrial paulista em especial por parte das políticas federais acentua certo grau mais elevado de autonomia político-econômica que, aos olhos dos partidários do “epicentro”, ofusca o privilégio de seu “singular” êxito econômico social galgado em detrimento e rapina das demais regiões. Ainda mais, tendo em vista o desprezo que o governo neoliberal teve com relação à “periferia” do capitalismo industrial do sudeste. Ocorre que, na política neodesenvolvimentista do PT, as defasagens começaram a se dissipar obedecendo quase literalmente o brocardo “apressa-te lentamente”. Isto, mais do que o espírito fácil de alguns anos atrás, no qual era quase senso comum condenar o fluxo migratório de forças produtivas sob a bandeira tosca “o antinordestino”, sobretudo na medíocre classe média paulista; isto corroborou para o difícil e doído sorriso banguela da mesma classe média já dissolvida com o seu significativo alargamento no governo atual. Privilégios perdidos, votos adquiridos... para Aécio. É quase uma resposta messiânica à promessa da regeneração do “epicentro” perdido, da volta à canaã e do enxugamento da classe média. Motivo de bandeiras de ódio e diferenciação acentuada nos discursos sectários acirrados na disputa eleitoral através da boca daqueles que não gozam mais e hoje só por aí defecam. Eis um traço antropológico digno, a meu ver, de cuidado neste processo eleitoral. Está em jogo uma crença, não pouco justificada na figura de Aécio, da interrupção de todo um processo galgado no sentido de uma real integração nacional através de descentramento paulatino dos “epicentros” do poder econômico e, mais ainda, do desenvolvimento social. A solução, felizmente, já se desenha desde 2003, apagar das gerações engendradas e subjetivadas no contexto da majestade a nefasta memória de seu “epicentro” para adaptarem-se no esquecimento de um passado que se desmantela com o descentramento promovido pelo neodesenvolvimentismo.
Outro aspecto que diz respeito à distinção de classes merece certa atenção. Trata-se da distinção social e, no mais das vezes, de ascensão social dada pela formação educacional de certo indivíduo. Há tempos, estudar, possuir uma graduação, etc., era elemento fundamental de distinção social principalmente para a clássica classe média (chamemos assim, a classe média neoliberal data do governo FHC hoje em “decadência”). No entanto, com as políticas de inclusão social, com o aumento significativo das universidades federais (ainda que em situações precárias) e também com a proliferação e incentivo do ensino técnico, contribui-se para que esse mesmo elemento de distinção dissolva-se na medida em que a ascensão social não se dá mais pela especificidade de se possuir ou não qualificação. Este espectro torna-se visível no ódio que a clássica classe média guarda com relação aos filhos de seus empregados estudarem nas mesmas universidades ou então com o mesmo bacharelado que a sua linda prole-bolha. O mesmo poderia ser estendido para a diferenciação antropológica regionalista acima dita, hoje não é só o paulista o engenheiro com pós-doutorado, mas também aquele nordestino que ele repugnava e continua a repugnar, que o paulista de clássica classe média odeia mais pela sua qualificação ser não raramente muito superior a sua. E, mais ainda, qualificação que não é adquirida necessariamente no seio do sudeste, mas sim, hoje, nas regiões em pleno desenvolvimento econômico-social. O “alargamento” da classe média, ou seja, o aumento do poder de consumo de uma fração significativa inferior à média clássica, a trabalhadora propriamente dita, junto a sua recomposição permitiu um aceleramento acentuado da circulação mercantil e um escoamento notável de força produtiva qualificada, o que equalizou demandas de mercado por mão de obra implicando diminuição dos salários de cargos que exigem tais qualificações. Não só isso, nos locais de consumo, como shoppings, p.ex., a classe média em ascensão ocupa em peso aquilo que era privilégio exclusivo da classe média clássica, provocando um desespero da última para distinguir-se da primeira. O caso é a impossibilidade cada vez mais acentuada de se distinguir entre tais classes médias. Os que temos, então, como advogados de Aécio, não passam de fantasmagorias, muito embora não seja inexpressiva em sua conduta política na representatividade burguesa. Eles insistem nisso, permanecem na ideia do antigo retorno às condições de privilégio que assentavam o menor grau de distinção. Tanto quanto os médicos cubanos feriram o orgulho distintivo do “doutô”, da elite bacharelada de jaleco branco, o alargamento da classe média em geral, a nova classe média, fere o orgulho distintivo da clássica classe média. Quando então se pode ainda observar que alguns não poucos que ascenderam, logo ganharam seu “lugar ao sol”, se permitem reproduzir a ideologia fracassada de uma política neoliberal como que denegando seu processo de ascensão. Mas essa guerra ideológica que se efetiva em política tem fim...
Ritornello: para aquele que toma partido pelo comunismo, pela esquerda comunista e não a esquerda do ponto de vista das formas burguesas de política. É certo que jamais antes a burguesia beneficiou-se tanto nos governos Lula e Dilma quanto o proletariado, os movimentos sindicais e movimentos sociais se frustraram. Há aqueles que crêem que quanto pior a situação, melhor para a luta revolucionária. Há também aqueles que são etapistas e admitem que o homem faz sua história, que não importa o que se faz na política burguesa que a luta operária continua. Certamente a luta continua sem cessar, mas julgar abster-se de posicionamento na recusa do PT nesta atual conjuntura parece-me manifestamente problemático. Acaso, ainda que pouco, o PT não foi mais permeável aos movimentos de massa? Ou é preferível um governo federal como o do estado de São Paulo, em que a última e primeira palavra são o mero porrete? São perguntas críticas, as respostas permanecem em suspenso. Mas na atual conjuntura, no meu ponto de vista, recusar pensar nos resultados de um eminente governo PSDB no Brasil é, a quem preste mediana atenção, recusar os aspectos mais progressistas jamais conquistados antes, ainda que mínimos, e, pior ainda, recuá-los a ponto de talvez tornarem-se nulos seus efeitos.
Diego Lanciote - estudante de filosofia - UNICAMP

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